Eles sabiam: o presidente João Batista
Figueiredo e o general Danilo Venturini, chefe do Gabinete Militar da
Presidência, foram informados com mais de um mês de antecedência que o
Destacamento de Operações de Informações (DOI) do 1º Exército, no Rio, preparava
um atentado terrorista no Riocentro, em 1981.
O chefe do Serviço Nacional de
Informações, Otávio Medeiros, chegou a indicar até a fonte — Newton Cruz, o
chefe da Agência Central do SNI.
Eles nada fizeram: um mês depois, na
noite de quinta-feira 30 de abril de 1981, duas bombas explodiram em torno do
pavilhão, enquanto Elba Ramalho cantava “Banquete de Signos” para milhares de
pessoas. O show pelo Dia do Trabalho, com participação de 30 artistas, era
promovido pelo Centro Brasil Democrático (Cebrade), vinculado a partidos de
oposição ao regime militar.
Uma bomba detonou no colo do sargento
paraquedista Guilherme Rosário, dentro do Puma conduzido pelo capitão de
infantaria Wilson Chaves Machado.
O
carro estava em movimento, o que impede determinar o local escolhido para a
explosão. No estacionamento, seria um ato intimidador. Na porta ou dentro do
show, um massacre.
O sargento morreu, o capitão ficou
ferido e sobreviveu. Serviam no DOI do 1º Exército, com jurisdição sobre os
estados do Rio, Minas e Espírito Santo.
Minutos depois, outra bomba abriu um
buraco no chão em frente à central de energia, sem danos. O espetáculo
continuou — mesmo se houvesse explodido a casa de força, um gerador seria
automaticamente ligado, o que expõe o planejamento primitivo da operação.
A revelação sobre o conhecimento
antecipado desse ato terrorista e sua difusão pela hierarquia do governo
militar está confirmada, documentada e assinada pelo chefe do SNI Otávio
Medeiros.
Fez isso em depoimentos no QG do
Exército, em Brasília, no segundo Inquérito Policial Militar (IPM) sobre o
caso.
Sua primeira narrativa ocorreu no
final de 1999. Contou que “de um mês e meio a um mês antes de 30 de abril”,
soube pelo subordinado Newton Cruz do “projeto de uma operação que seria
realizada por dois elementos do DOI no Riocentro, mas que “foram dissuadidos”.
Achando o caso “contornado”, ressalvou, não avisou a “nenhuma autoridade do
Exército ou da administração do Estado do Rio”. Omitiu nesse depoimento um
detalhe: informara o presidente e o chefe do Gabinete Militar.
Cruz, ao depor em Brasília, apresentou
versão diferente: “Soube da possibilidade de ser lançada uma bomba no
estacionamento do Riocentro, por dissidentes do DOI, cerca das vinte horas do
dia 30 de abril de 1981”. Foi informado por telefonema do chefe de Operações do
SNI, Ari Pereira de Carvalho.
Na sua versão, quem alertou Carvalho
foi o coronel Freddie Perdigão Pereira, da agência do SNI no Rio: “Perdigão os
demovera, os convencera a colocar a bomba em local afastado, de modo a não
causar danos pessoais ou materiais, e estava indo junto com eles. Não havia o
que fazer, eles não estavam lá para matar ninguém”. Ressalvou “não se
lembrar" de ter avisado seu chefe, Medeiros, achando que “não o fez antes
dos acontecimentos, só depois”.
Restava um conflito de datas. Um general
dizia que soubera cerca de um mês antes. Outro alegava conhecimento no dia, com
uma hora de antecedência. Essa divergência levou os principais chefes do SNI a
um confronto. E na manhã de quinta-feira 27 de janeiro de 2000, eles foram
submetidos a uma acareação.
Discutiram diante do encarregado do
Inquérito Policial Militar, general Sérgio Ernesto Alves Conforto. Estavam
presentes o procurador Cezar Luís Rangel Coutinho, o escrivão tenente-coronel
José Roberto Rousselet de Alencar, com o tenente-coronel José Carlos Cardoso e
o coronel Valter Carvalho Simões Jr como testemunhas.
No quartel-general do Exército, diante
do subordinado, Medeiros reafirmou ter sido informado por Cruz “de um mês e
meio a um mês” antes do atentado. Então, revelou que “transmitiu esse
conhecimento ao presidente e ao general Venturini”, chefe do Gabinete Militar.
Ao ouvir a confissão, Cruz criou “um momento de maior tensão” — anotou o
encarregado do IPM. Retrucou o ex-chefe, desqualificando-o: “Mentira!"
Medeiros devolveu: “Você não lembra?”
Repetiu o repasse da informação a Figueiredo e a Venturini. Cruz piscou,
arrefeceu o tom de voz, sugerindo um “engano” de Medeiros: “Talvez o fato a que
se refere diga respeito a outro evento”.
“Permaneceram em suas posições de
opinião”, registram os autos. No fim houve uma distensão e passaram a conversar
sobre fatos “que os teriam afastado”. A acareação terminou com Medeiros e Cruz
abraçados, “emocionados”.
O registro do que aconteceu naquela
manhã no QG do Exército foi subscrito por todos e está guardado há 15 anos nos
arquivos do Superior Tribunal Militar. Ele é essencial para a compreensão da
anarquia nos quartéis, durante a ditadura, que levou as Forças Armadas
brasileiras ao maior desastre de sua história. Expõe os generais do último
governo militar — o presidente da República, os chefes do Gabinete Militar e do
SNI, entre outros — acobertando integrantes do DOI, do SNI e do Centro de
Informações do Exército (CIE) em atos de terrorismo, com ameaça à vida de
milhares de civis. E concederam aos envolvidos a maior recompensa funcional
possível na burocracia da violência: a impunidade.
Se no centro do governo não havia
surpresa com o atentado, menos ainda no comando do 1º Exército. Extraordinário
mesmo só o fiasco da “missão”, com um cadáver e um ferido.
Um ano antes discutira-se no DOI um
projeto para ataque contra o espetáculo de 1º de maio no Riocentro. Foi em
abril de 1980. O espetáculo organizado por Chico Buarque, que lançava a música
“Apesar de você”, destinava-se ao financiamento do Centro Brasil Democrático,
ligado ao Partido Comunista. No comando do Destacamento de Operações de
Informações estava o coronel Romeu Antonio Ferreira. O DOI era uma anomalia
burocrática na estrutura hierarquizada e disciplinada do Exército. Nascera no
final de 1969, como organismo policial autárquico. Seus integrantes não usavam
farda, trabalhavam em sigilo e sob codinomes. Oficiais chamavam-se “doutores”.
Os subalternos, “agentes”.
Ferreira era o “Dr. Fábio”. Um mês
antes do show, recebeu do subchefe de Investigações Edson Sá Rocha, o “Dr.
Sílvio”, memorial de duas páginas descritivas da forma de abordagem e de
execução do atentado, acompanhado de um desenho esquemático das instalações do
Riocentro, com áreas assinaladas.
O objetivo era provocar um “apagão”
durante o show, levando milhares ao pânico dentro do pavilhão. A confusão se
prolongaria no estacionamento, onde estariam espalhados objetos pontiagudos
para perfurar pneus dos carros.
Na origem, a iniciativa não seria do
DOI mas da agência carioca do SNI, na conexão mantida pelo coronel Freddie
Perdigão Pereira com parte da equipe de Operações do destacamento, entre eles o
sargento Guilherme Pereira do Rosário.
“Dr. Fábio” leu o plano e o rejeitou.
Conversou com “Dr. Sílvio” que, segundo ele, concordou. Procuradores do
Ministério Público Federal discordam. Entendem que Edson Sá Rocha participou do
primeiro plano e do atentado doze meses depois.
Naquele
início de abril de 1980 o comandante do DOI encaminhou os papéis com veto
explícito (“negativo”) ao seu imediato, “Dr. Fernando” nascido Julio Miguel
Molinas Dias. Quando bombas explodiram, no ano seguinte, era Molinas quem
comandava o DOI.
Nas páginas seguintes relata-se a
história de como foi encoberto o atentado terrorista no Riocentro durante o
governo Figueiredo. Baseia-se em depoimentos e documentos guardados nos
arquivos do Supremo Tribunal Militar, da Procuradoria Militar e do Ministério Público
Federal no Rio, além de entrevistas com oficiais, ex-agentes e colaboradores do
DOI, CIE e do SNI no período. Nesses 33 anos, duas investigações apresentaram
fatos novos e relevantes: a conduzida em 1999 pelo general Sérgio Conforto e a
encerrada no mês passado pelos procuradores Antonio do Passo Cabral, Sergio
Suiama, Ana Cláudia de Sales Alencar, Tatiana Pollo Flores, Andrey Mendonça e
Marlon Weichert, do Ministério Público Federal no Rio. Juntas, desmontam a
maior das pantominices montadas durante o regime militar.
Fonte: Site O Globo 30/03/2014
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