De um lado da trincheira simpatizantes
das reformas de Jango, de outro, defensores da “democracia” contra os perigos
do marxismo formavam a atmosfera na Capital do Estado.
– Todo mundo, no Brasil, está
defendendo a legalidade. Da doença, pois, ela não morrerá! O perigo é que morra
de cura.
A frase, com ares de profecia, foi
escrita pelo jornalista Rubens de Arruda Ramos na coluna que assinava como
Guilherme Tal no jornal O Estado do dia 25 de março de 1964 – uma semana antes
do golpe que levou o Brasil a viver 21 anos sob regime militar.
Com seus cerca de 100 mil habitantes,
Florianópolis reproduzia as tensões e disputas nacionais. Estudantes lideravam
manifestações no Centro da Capital em defesa das reformas de base do presidente
João Goulart e contra o aumento das passagens de ônibus definido dias antes
pela prefeitura.
Intelectuais e jornalistas discutiam o
futuro do país nas mesas do Ponto Chic e na Livraria Anita Garibaldi,
a única a vender livros marxistas na cidade. Nos jornais, a primeira-dama Edith
Ramos, mulher do governador Celso Ramos, fazia a convocação para a versão
catarinense da Marcha da Família com Deus pela Liberdade – cuja edição original
reunira 300 mil pessoas em São Paulo no dia 13 de março daquele ano. O chamado
endereçado especialmente às mulheres começou a circular no dia 27.
Na véspera do golpe, Santa Catarina
acompanhava atenta o acirramento das posições dos militares e de João Goulart.
No primeiro momento, Celso Ramos permaneceu cauteloso. Assinou uma nota no dia
31 em que pedia calma à população e dizia confiar na “solução pacífica dos
problemas do país”. Aliado ao PTB em plano local – tendo como vice o janguista
Doutel de Andrade – o governador não sabia o quanto a chamada revolução poderia
respingar nele mesmo. Após a confirmação da renúncia de Jango, dia 1º de abril,
Ramos assina uma nota mais enfática.
“O Estado que me confiou, em processo
democrático, as responsabilidades de seu governador, não ignora a posição
ideológica em que sempre me mantive, relativamente ao comunismo: repulsa
intransigente e formal”, afirmava o governador na abertura do texto.
Naquele momento, passaria a dividir o
poder com o 5º Distrito Naval, sediado em Florianópolis e sob comando do
almirante Murilo Vasco do Valle Silva. Sob ordens dos militares, começava a
Operação Limpeza, destinada a prender pessoas apontadas como subversivas ou
comunistas – como o escritor Salim Miguel, antigo proprietário da Livraria
Anita Garibaldi, detido enquanto tomava um café no Ponto Chic. Na época, Salim
chefiava o escritório da Agência Nacional e o gabinete de imprensa do próprio
governador Celso Ramos.
Chefe de redação do jornal A Gazeta,
Carlos Alberto Silveira Lenzi escrevia uma coluna diária em que elogiava as
manifestações dos estudantes antes do golpe e revelava simpatia pelas reformas
de Jango. Na edição do dia 9, alertava “não confunda trabalhista com
comunista”. Na semana do golpe, Silveira Lenzi foi surpreendido em casa,
tomando café da manhã, por um camburão da Marinha. Foi levado para depor.
– Eles achavam que eu sabia quem era
socialista, comunista. E queriam que eu fosse lá dedar os caras, mas eu não
disse nada – lembra Lenzi, hoje desembargador aposentado do Tribunal de Justiça.
As prisões foram a senha para a
desforra dos vitoriosos. No dia 3 de abril, no final da tarde, um grupo de
simpatizantes do golpe foi até a Livraria Anita Garibaldi, na Praça XV, quase
esquina com a rua Conselheiro Mafra. O local foi arrombado, os livros
espalhados pela rua e queimados. No dia seguinte, o jornal A Gazeta não
continha o entusiasmo com o gesto, ao dizer que “o povo florianopolitano deu
provas sobejas de sua fibra democrata, extinguindo um foco pernicioso que há
vários anos se instalara em pleno coração da cidade”.
Na imprensa, o presidente estadual do
pequeno partido PDC, Nereu do Valle Pereira, pedia o retorno dos trabalhos da
Câmara de Vereadores e da Assembleia Legislativa para que fossem cassados os
parlamentares alinhados ao governo deposto. Hoje, professor aposentado da UFSC,
ele afirma que houve exagero naqueles dias, inclusive no episódio da queima da
livraria – no qual admite participação indireta.
– Um processo desses revolucionários,
as paixões nem sempre alimentam as razões. Tem muitas passagens que hoje eu
revendo não agiria da mesma forma – afirma Pereira, hoje com 85 anos e ainda
comedido ao falar sobre o assunto.
A paixão dos vitoriosos ganhou as ruas
de Florianópolis de forma inequívoca no dia 17 de março. Sem dúvidas sobre quem
eram vencidos e vencedores, com o marechal Humberto Castelo Branco eleito
presidente do Brasil pelo Congresso Nacional, a Capital realizou sua Marcha com
Deus pela Família, lotando as ruas do Centro.
Fonte: Site Jornal A Notícia 29/03/2014
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